Quimeras Humanas
Poderão células geneticamente diferentes coexistir no mesmo organismo?
A Quimera é uma figura da mitologia grega, um monstro com cabeça de leão, corpo de cabra e cauda de dragão ou serpente. Produto da união de Equidna - metade mulher, metade serpente - com o gigante Tífon. Terá sido morta pelo herói coríntio Belerofonte.
Designam-se por quimeras os animais constituídos por mais do que um tipo de células de origem diferente, recorrendo à fértil fonte de imagens que a mitologia grega nos legou. A sua origem resulta de erros no processo de fecundação e subsequente divisão celular. Esses erros podem ocorrer na meiose e gametogénese – formação das células sexuais nas espécies sexuadas -, na fertilização ou no desenvolvimento embrionário.
Mesmo na nossa espécie, há indivíduos com células de dois tipos, ou mesmo mais, contendo informação genética diferente. Como é que isso ocorre?
Tradicionalmente, os manuais explicavam que, quando um espermatozóide se fundia com a membrana celular do óvulo, havia uma alteração das propriedades da membrana que impedia que qualquer outro espermatozóide se ligasse ao mesmo óvulo. Isso é, de facto, o que acontece na maior parte das situações. Mas, nem sempre.
Aqui temos o caso em que uma teoria estabelecida foi parcialmente refutada pelos factos, o que implicou a sua revisão – algo em que a ciência é fértil, para surpresa dos seus detractores.
Por exemplo, pode suceder que um indivíduo tenha um único tipo de genes maternos, mas dois tipos de genes paternos, em resultado de o óvulo ter sido fertilizado por dois espermatozóides do mesmo pai, situação designada por triploidia (as nossas células são normalmente diplóides, contendo 2n cromossomas: metade de origem materna e metade de origem paterna). Surpreendentemente, esses erros são muito mais frequentes do que se esperava. Graças aos desenvolvimentos da biologia molecular e das técnicas com marcadores genéticos, é hoje possível identificar situações de quimerismo. A triploidia (uma forma de quimerismo) é relativamente frequente na nossa espécie: ocorre em cerca de 1% de todas as concepções. E está presente em mais de 10% de todos os abortos espontâneos. É tudo menos ocasional. O que faz com que o fenómeno seja raramente observado é a reduzida viabilidade dos organismos assim constituídos.
A condição triplóide não é estável e tendem a perder-se parte dos cromossomas, passando à condição de células diplóides. Só que os cromossomas perdidos podem ser diferentes em diferentes células, originando populações de células diferentes no mesmo indivíduo. E há uma série de combinações possíveis.
A negociação da interacção entre estas células geneticamente (embora só parcialmente) diferentes nem sempre é fácil. Podemos imaginar que o sistema imunitário do indivíduo possa atacar parte das suas células por não as reconhecer como suas. Não admira, pois, que a maior parte desses casos seja inviável.
O caso de triploidia recentemente descrito na publicação Human Genetics por Vivienne Souter e colaboradores é extraordinário a vários títulos. O artigo descreve a existência de dois gémeos em que um é aparentemente um rapaz e o outro é um verdadeiro hermafrodita. Estes gémeos têm a mesma informação genética proveniente da mãe, mas apenas partilham metade da proveniente do pai. Esta condição pode ter ocorrido ou por um óvulo que foi fecundado por dois espermatozóides – depois tendo ocorrido a separação das células embrionárias em desenvolvimento num estádio subsequente, como normalmente ocorre na formação de gémeos idênticos -, ou por o óvulo se ter separado em duas células que foram, cada uma, fecundadas por dois espermatozóides.
Esta situação de gémeos que não são monozigóticos nem dizigóticos (falsos gémeos), resultantes de triploidia havia sido prevista em 2003 por um outro investigador (Golubovsky). A sua descoberta veio confirmar que a teoria construída tem poder predictivo: permite prever situações ainda não conhecidas à data da sua formulação.
Trata-se de uma situação extremamente rara. E não fora o facto de um dos gémeos ser hermafrodita teria, porventura, passado despercebida. Porque é que um dos gémeos é hermafrodita e o outro não? Porque a proporção de células XX e de células XY varia de tecido para tecido nos dois gémeos.
A quantidade de erros que podem acontecer no processo de produção de um organismo é imensa. Erros genéticos, erros no processo de desenvolvimento. Muitos desses casos são tão frequentes que não os designamos sequer por erros: são meros variantes. Alguns de nós nascem com um número excessivamente elevado de mutações levemente deletérias, enquanto outros apenas com algumas. E outros há que nascem com apenas uma mutação terrivelmente devastadora. Quais são os mutantes? Somos todos mutantes.
QUIMERISMO
Em zoologia, quimerismo o nome que se dá a um animal que tem duas ou mais populações de células geneticamente distintas que teve origem em diferentes zigotos; se as diferentes células surgiram a partir do mesmo zigoto, é chamado de mosaíco. É rara em seres humanos: registaram-se apenas 40.
Quimeras são formadas a partir de quatro células-mãe (ou dois ovos fertilizados) ou de três células-mãe (um ovo fertilizado se funde com uma ovo infértil ou um ovo fertilizado se funde com um espermatozóide extra). Cada população de células mantém o seu próprio caráter e o animal é uma mistura das correspondidas partes.
EM SERES HUMANOS
O quimerismos em humanos acontece quando dois óvulos fecundados se fundem antes do quarto dia de gestação, misturando as informações genéticas sem que o indivíduo sofra grandes mutações. Se a fusão entre os óvulos ocorrer após o quarto dia, eles produzirão gêmeos xifópagos (siameses).
Dentro dos quatro dias de gestação, se os óvulos fecundados forem do mesmo sexo, o indivíduo nascerá perfeito. Se os óvulos forem de sexos diferentes, o indivíduo nascerá hermafrodita. Nos casos onde os óvulos eram do mesmo sexo, o indivíduo, que não apresentava nenhum tipo de deformidade, pôde viver sua vida inteira sem se dar conta de sua característica incomum, talvez por isso haja tão poucos casos registrados.
Os casos de quimerismos genético se tornaram mais evidentes após a utilização de testes de DNA, os indivíduos portadores de quimerismo, ao ter seu DNA comparado ao de filhos, pais e irmãos mostraram resultados surpreendentes: Em um dos casos, uma mãe ao fazer um testes de paternidade em seus filhos para provar quem era o pai deles, resultou, em um primeiro momento, que a mesma não poderia ser a mãe, mas filhos do suposto pai, sem entender o resultado, os médicos estenderam o exame para os pais e irmãos dessa mãe, de acordo com o segundo exame, os pais da mãe eram realmente os avós, mas o DNA correspondente a parte da mãe era igual a de seu irmão. Dada a impossibilidade de dois homens terem um filho, percebeu-se que havia algo incomum com a mãe, após vários testes de DNA foi comprovado que a mãe era uma quimera genética.
Uma pessoa normalmente carrega 50% da informação genética da mãe e 50% da informação genética do pai, indivíduos que possuem quimerismo carregam 100% da informação genética de ambos e com informações genéticas diferentes em seu próprio corpo. No caso acima, a mulher possuía 100% do DNA de seu pai nos cabelos e nada do de sua mãe, já em um amostra de pele, foi encontrado 100% do DNA da mãe e nenhum traço do DNA do pai. Os filhos dela são normais e carregam 50% do DNA do pai biológico, ou seja, o quimerismo não é hereditário, é apenas um grande fruto do acaso que pode acontecer com qualquer pessoa, você pode ser uma quimera, seus filhos poderão ser e talvez você nunca fique sabendo disso!
IMPLICAÇÕES PARA A LEI
A prova, tratada genericamente, no decorrer do processo constitui o meio formal de se atingir a verdade dos fatos, seja ela constitutiva, impeditiva, modificativa ou mesmo extintiva do pretenso fato alegado pelas partes; contudo, não abandonando sua razão essencial no processo, esta é ponderada pelo julgador, que lançará mão de sua cognição perante o argumento factual melhor apresentado para o desfecho justo da lide.
Neste ínterim, questiona-se: o princípio sistêmico jurídico do livre convencimento do julgador deve ser norteado por sua verdade cognitiva, ou a esta “verdade pessoal”, mesmo que célebre, apurada e axiologicamente neutra cabe ressalvas quando defrontadas às provas periciais, fundamentadas nos mais altos e confiáveis matizes científicos?
A esta questão respondem as honoráveis e rotineiras descobertas e inventos no mundo das ciências; a saber, o quimerismo e o mosaicismo genéticos e seus desdobramentos quanto à confiabilidade dos testes de DNA (ácido desoxirribonucléico), ainda não discutido nos tribunais, em ao menos três situações semelhantes:
a) O quimerismo genético congênito: quando um indivíduo detém dois códigos genéticos distintos, em seu organismo, distribuídos aleatoriamente nos diversos órgãos e tecidos, provenientes da fusão de dois embriões diferentes;
b) O mosaicismo genético: quando ocorre anomalia no processo inicial da divisão celular, um único óvulo fecundado, depois de repetidas subdivisões gera uma seqüência genética distinta e a fundi no mesmo indivíduo;
c) O microquimerismo genético: de maior abrangência, ocorre quando há intercâmbio de células por dois indivíduos; sejam comuns, em gestação normal, entre a mãe e o feto; na gestação de gêmeos dizigóticos; fertilizações in vitro; ou de forma induzida, no tratamento de certas leucemias em pacientes que sofreram transplante de medula óssea.
A pacificada posição, em todas as esferas, do Poder Judiciário quanto à confiabilidade dos testes de DNA assentam-se na possibilidade do julgador a quo considerar o resultado como prova confiável, mas não infalível no esclarecimento da verdade buscada no ato jurisdicional e sua conseqüente justiça.
Contudo, a visão recorrente assenta-se apenas em duas vertentes discutíveis no rumo desta prova cabal: O critério objetivo, na possibilidade real do erro humano, quando da feitura do teste, seja em sua coleta ou análise (negligência, imprudência ou imperícia do laboratório e/ou dos indivíduos envolvidos nas diversas etapas do procedimento) ou fraude (dolo das partes sob quaisquer circunstâncias) e, no critério subjetivo, assentado no livre convencimento do julgador, dada sua análise global do caso concreto, sua complexidade, seu alcance; sejam por fatores econômicos, sociais, ou pelo ideal de justiça na pacificação dos conflitos.
De qualquer modo, existe ao menos mais um foco a ser considerado; sobretudo, nos casos penais onde a presunção de inocência do acusado deve ser alcançada nos princípios, basilares democráticos, da ampla defesa e do contraditório, até o justo veredicto.
O critério a priori, deve considerar a probabilidade da existência da anomalia genética do quimerismo; mesmo que seus dados estatísticos ainda sejam desconhecidos (até então, apenas quarenta casos comprovados em todo mundo, por mero acaso); pois a possibilidade do eventual erro deve ser analisada em todas as suas variabilidades, sob pena de voraz injusto e conseqüente perda da meta do Estado Democrático de Direito.
O erro a priori, portanto, não se assenta no teste em si (feito a posteriori, com técnicas reconhecidamente eficazes como meio investigativo); mas na real e reconhecida possibilidade da metodologia atual ainda desconsiderar a existência do quimerismo genético, apesar dos meios científicos necessários serem, grosso modo, os mesmos já utilizados, diferenciados apenas na complexidade e viabilidade econômica (é necessário retirar amostras de vários órgãos e tecidos do investigado, de seus parentes de primeiro grau, inclusive amostras de alguns órgãos internos).
Desse modo, o erro evidencia-se na hiposuficiência quanto ao universo genético posto sob exame, por falta da prática jurídica ou cifras monetárias estatais; pois as seqüências do DNA separadas para a verificação verdadeiramente atestam, em seus diversos tipos (observados métodos consagrados: PCR: polymerase chain reaction; RFLP: restriction fragment of length polimorphism; e VNTR: variable number tandem repeats), o até agora definido como normal ou regra na espécie humana; todavia, quando da ocorrência das situações de excludências, o que até o momento era considerado o maior dos acertos do teste de DNA: a negativação, torna-se o principal objeto de erro; pois, independente do número de contra-provas e retro-provas efetuadas nas mesmas amostras coletadas (ou amostras do mesmo órgão ou tecido) no indivíduo portador do quimerismo genético, a randomicidade de sua anomalia torna o teste e suas contra-provas e retro-provas um jogo de erros numa probabilidade infinita. O investigador, literalmente, gira em círculos concêntricos.
Sob o ponto de vista lógico atual, as negativações deveriam ser categóricas, enquanto as positivações probabilísticas. Entretanto, o novo fato inverte os pólos de possibilidades e tornam as investigações ainda mais necessárias; dadas as conseqüências, por exemplo, de livrar-se um suspeito de homicídio por falta de compatibilidade genética sua com uma amostra de DNA coletada na cena do crime; ou de um pai ser dispensado da provisão de alimentos por sua exclusão de paternidade, acarretando a perda do direito subjetivo do filho verdadeiro, inclusive à herança e a cruel desmoralização da mulher no final do processo.
Para citar-se um caso concreto registrado em 2002, a exclusão ocorreu com relação à mãe de dois filhos que teve sua “maternidade” questionada em juízo, sob alegação de fraude contra benefícios públicos; além de suspeita como seqüestradora de sua própria prole. A mãe, de 26 anos, Lydia Fairchild, uma quimera genética congênita, ao solicitar um benefício assistencial no Departamento de Serviços Sociais do Estado de Washington, nos Estados Unidos da América, foi requisitada a submeter-se ao teste padrão de confirmação de parentesco via exame de DNA; a surpresa recaiu-lhe quando intimada a prestar esclarecimentos viu-se indiciada, nos crimes citados, e levada a julgamento, no qual lhe sobreveio a dupla sorte do conhecimento desta possibilidade por parte de um dos assistentes da Promotoria, daquele estado, e uma terceira gravidez, que fôra acompanhada de perto pelo juiz do caso, até o nascimento do terceiro filho, sob a vigilância de um oficial de justiça. Neste último, semelhante aos seus irmãos, não havia compatibilidade genética materna. Dissolvendo a dúvida, em parte; pois a inseminação poderia ter sido in vitro.
Dois anos após iniciados os testes de confirmação da anomalia genética, foi-lhe informado que, a identidade genética de seus filhos era compatível com a de seu pai; ou seja, por mais bizarro que pareça, o avô materno era geneticamente “a mãe de seus próprios netos”.
Tal caso e demais possibilidades plausíveis de ocorrência de erros contundentes; devido à vasta gama de fatores provocativos do quimerismo genético, como por exemplo, as inseminações in vitro, ou ainda, a maior incidência dos transplantes de medula óssea; enseja o maior critério possível na feitura dos testes de DNA, independente dos fatores de complexidade e economia envolvidos; haja vista que, tais fatores são historicamente adaptáveis às contingências da sociedade, sobretudo quando provenientes do Poder Judiciário; que não pode se escusar de inaugurar novas fronteiras, admitindo estar sempre “um passo atrás” da sociedade, para lhe assegurar a paz oriunda da justiça.
Apenas as reiteradas solicitações dos julgadores com a formulação de uma nova exigência, sine qua non, da excludências do quimerismo e mosaicismo genéticos nos testes de DNA, podem criar a salutar reengenharia, com critérios mais apuradamente científicos, dos laboratórios de análises genéticas hoje qualificados a este fim.
Essa nova exigência fará, por seu poder multiplicador (vantagem cognitiva), em seus critérios legais, uma reorganização com uma maior profissionalização do setor laboratorial difuso de suma importância provedoral e de confiabilidade das provas periciais obtidas por laudos técnicos de exame genético.
O mero argumento do aspecto econômico oneroso, aludido para a negativa dessa nova necessidade, não pode, ou não deve sobrepor-se aos princípios constitucionais da presunção de inocência, aliado à ampla defesa e ao contraditório. Há de se lembrar que, em passado recente, esses mesmos chavões de onerosidade foram usados ao que atualmente chama-se de teste de nível básico, de método mais rudimentar. Semelhantemente ocorrido com os testes de positivação do HIV nas coletas de sangue e seus derivados; visões ultrapassadas e que, por reiteradas decisões estimularam novas tecnologias, tornando-os mais confiáveis e menos onerosos.
A visão dos Tribunais a respeito da confiabilidade dos testes atuais de DNA deve ser ponderada pelos fatos ora narrados. Em pesquisa no Brasil, foi identificada apenas a recomendação da Portaria doInstituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (Portaria S – IMESC – 7, de 29 de agosto de 2006, Publicada no Diário Oficial, em 30 de agosto de 2006); que regulamenta os procedimentos de coleta de material biológico, emissão de laudo e da metodologia utilizada nos exames de investigação de vínculo genético por meio de identificação de polimorfismos de DNA (item 3.4, Anexo 1 – in verbis: “Indivíduos transfundidos com sangue total ou seus derivados ou que receberam transplante de medula óssea nos últimos seis meses anteriores a coleta, devem ter seu exame feito por coleta de sangue e também swab bucal, para que se evite que o laudo seja inconclusivo por situação de quimerismo.").
Os avanços científicos não podem ser descartados, como se não existissem, pela simples diligência de acreditar em vez de saber. Pode ser incômodo abrir mais uma vez a rocha que fecha a caverna; sempre é doloroso abrir-se mão de uma crença; sobretudo quando filha da ciência; mas, como ensina o saber científico, por seus grandes pensadores: “a ciência é o reinado das verdades transitórias”. E este é apenas mais um caso, onde a linearidade e o absolutismo, típicos do positivismo jurídico, produzida via o clássico exemplo dos testes de DNA, como toda “verdade científica” foi posta em sua fase final de transitoriedade.